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Não há muitos cineastas que possam e conseguem flertar com a realidade tão cativantemente quanto Satoshi Kon. O cineasta japonês, que morreu há 12 anos de câncer no pâncreas aos 46 anos, é um dos mais respeitados animadores japoneses, um diretor que muitas vezes é pronunciado no mesmo lugar que Hayao Miyazaki e Katsuhiro Otomo. Embora seu interesse nas possibilidades do ciber-espaço e na natureza da mídia e da massa, possa se aproximar mais do trabalho de David Cronenberg ou Olivier Assayas, Kon foi um gênio cinematográfico singular e único.
Borrando as linhas entre desempenho e identidade, a tensão entre o real e o irreal, e a linha muito tênue entre ilusão e materialidade, o trabalho de Kon se afastou dos convencionais animes, nos quais as narrativas muitas vezes vão para gêneros sci-fi, fantasia ou romântico. Sua nova abordagem para a animação tomou o caminho de auteurs live-action como David Lynch, Terry Gilliam e Alfred Hitchcock, e levou Kon a desenvolver seu estilo unico de cinema, caracterizado pelo uso pesado de cenas sobrepostas e jump cortes. Usando truques de câmera, as narrativas de Kon escorregavam e deslizavam amorfosamente umas nas outras, como sonhos – técnicas que, violenta às vezes, poderiam evocar o colapso psicológico da psique de um personagem (Perfect Blue), ou suavemente cair uns nos outros como várias memórias (Millennium Actress).
Enquanto seus colegas contemporâneos como Miyazaki estavam ocupados construindo mundos fantásticos cheios de colinas verdes e céus azuis, o universo de Kon olhava para dentro do ser humano e da sociedade em que ele vive, suas narrativas frequentemente se voltavam para artistas que experimentam traumas que os levam a mundos onde o real e irreal se misturavam.
Um outro ponto importante no Cinema de Satoshi era seu fascínio por personagens femininas intrigantes, que veio em parte de seu interesse em mangá shojo, como Sussurros do Coração (que foi transformado em um anime, pelo Studio Ghibli), elas são incertas, mercurial e elásticas, possuindo uma vulnerabilidade ligeiramente confusa, mas sedutora para os olhos do telespectador, além de terem arquétipos únicos dentro de cada filme.
Mas o retrato de Kon de seus protagonistas não deve ser tomado pelo valor visual, seu uso saltante do olhar mais delicado, demonstra uma forte consciência social. Várias de suas obras como Perfect Blue, Tokyo Godfathers, Paranoia Agent, não são apenas fundamentadas em questões sociais modernas, mas servem como críticas claras da sociedade japonesa e até do mundo como um todo.
Pegamos por exemplo Perfect Blue que aborda os aspectos de uma Idol no Japão, mas que podemos expandir para toda a indústria do entretenimento, nessa indústria a imagem é tudo, e isso é ainda pior para as mulheres. A perda de imagem pode significar a perda de toda uma carreira. Mulheres jovens, especialmente Idols cuja as imagens são cuidadosamente elaboradas para o público, são encorajadas a retratar uma doce inocência que as torna agradáveis para as massas. Aquelas que rompem essa imagem são frequentemente confrontadas por multidões de críticas. Apesar de ser um filme de 1997, Perfect Blue demonstra bem como a indústria do entretenimento funciona atualmente. Se pegarmos por exemplo o K-Pop e sua ascensão nos últimos anos e olharmos para essa indústria de forma mais crítica e profunda, podemos fazer um paralelo perfeito com o que acontece em Perfect Blue, Idols do K-Pop devem manter sua aparência puritana e se sair do padrão de beleza estabelecido, são tratadas como descartáveis e jogadas fora como objetos.
Satoshi Kon tinha a capacidade de abordar todos esses temas com maestria, indo totalmente na contra mão do que era produzido em seu país, infelizmente ele faleceu nos deixando poucas obras, mas que mostram sua cinematografia única, em uma entrevista, ele disse que não precisa explicar muito a seu espectador sobre suas obras, que ele confia que cada um dará sentido à história que vê. Ele diz:
“Se você olha para um sonho em geral, é muito difícil discernir o significado. No entanto, com o passar do tempo, pode haver certos significados em segundo plano. Filmes que você pode assistir uma vez e entender completamente – esse é o tipo de filme que eu realmente não gosto. Pode haver uma certa parte que você não entende muito bem, mas há uma parte que repousa no seu coração”.
As criações de Satoshi Kon definitivamente não são fáceis de se entender, mas você as sente de uma maneira única, profunda e esmagadoramente contundente, por isso elas serão pra sempre atemporais.